CRÍTICA ONTOLÓGICA SOBRE IMAGINAÇÃO E CRIAÇÃO: DEBATE ENTRE VYGOTSKY E CASTORIADIS

Vanessa Clementino Furtado 

Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá – MT Brasil

Resumo

Este arti­go apre­sen­ta uma leitu­ra críti­ca à luz da Ontolo­gia do Ser Social, de nos­sa pesquisa de mestra­do sobre Imag­i­nação e Cri­ação. A pesquisa foi embasa­da em dois autores: Cor­nelius Cas­to­ri­adis e Lev S. Vygot­sky. Cas­to­ri­adis, ao romper com o marx­is­mo, traça um arcabouço teóri­co obje­ti­van­do anal­is­ar cam­in­hos para o proces­so rev­olu­cionário e acred­i­ta que a ontolo­gia humana está fun­da­da no Imag­inário Rad­i­cal. Já Vygot­sky anal­isa o desen­volvi­men­to psi­cológi­co da Imag­i­nação e Cri­ação à luz do mate­ri­al­is­mo históri­co e dialéti­co. O debate entre essas difer­enças ontológ­i­cas lev­ou-nos à críti­ca ao mod­e­lo ontológi­co cas­to­ri­ad­i­nano e à explic­i­tação da noção ontológ­i­ca marx­i­ana pre­sente na obra vygot­skiana, na qual o autor demon­stra que Imag­i­nação e Cri­ação se con­stituem como partes das práx­is humanas. Emb­o­ra deter­mi­nadas obje­ti­va e mate­rial­mente, ain­da são essas cat­e­go­rias essen­ci­ais para com­preen­der a capaci­dade humana de se lib­er­tar, inclu­sive da real­i­dade obje­ti­va e mate­r­i­al transformando‑a e trans­for­man­do a si própria.

Palavras-chave: Imag­i­nação, Cria­tivi­dade, Ontolo­gia, Cas­to­ri­adis, Psi­colo­gia Histórico-Cultural

Resumen

Este artícu­lo pre­sen­ta una lec­tura críti­ca a la luz de la Ontología del Ser Social, a par­tir de nues­tra inves­ti­gación de maestría sobre Imag­i­nación y Creación. La inves­ti­gación se basó en dos autores: Cor­nelius Cas­to­ri­adis y Lev S. Vygot­sky. Cas­to­ri­adis, al romper con el marx­is­mo, esboza un mar­co teóri­co cuyo obje­ti­vo es analizar los caminos del pro­ce­so rev­olu­cionario y cree que la ontología humana se fun­da­men­ta en el Imag­i­nario Rad­i­cal. Vygot­sky anal­iza el desar­rol­lo psi­cológi­co de la Imag­i­nación y la Creación a la luz del mate­ri­al­is­mo históri­co y dialéc­ti­co. El debate entre estas difer­en­cias ontológ­i­cas nos llevó a criticar el mod­e­lo ontológi­co cas­to­ri­ad­i­nano y a explicar la noción ontológ­i­ca marx­ista pre­sente en la obra de Vygot­sky, en la que el autor demues­tra que la Imag­i­nación y la Creación se con­sti­tuyen como partes de la prax­is humana. Aunque deter­mi­nadas obje­ti­va y mate­rial­mente, estas cat­e­gorías siguen sien­do esen­ciales para com­pren­der la capaci­dad humana de lib­er­arse, inclu­so de la real­i­dad obje­ti­va y mate­r­i­al, trans­for­mán­dola y trans­for­mán­dose a sí mismo.

Pal­abras clave: Imag­i­nación, Cre­ativi­dad, Ontología, Cas­to­ri­adis, Psi­cología Histórico-Cultural

Abstract

This arti­cle presents a crit­i­cal read­ing in the light of the Social Being’s ontol­ogy, based on our research on Imag­i­na­tion and Edu­ca­tion. Two authors were used: Cor­nelius Cas­to­ri­adis and Lev S. Vygot­sky Cas­to­ri­adis, when break­ing with Marx­ism, traces a the­o­ret­i­cal frame­work aim­ing to ana­lyze paths for the rev­o­lu­tion­ary process and believes that human ontol­ogy is found­ed on the Rad­i­cal Imag­i­nary. Vig­ot­sky, on the oth­er hand, ana­lyzes the psy­cho­log­i­cal devel­op­ment of Imag­i­na­tion and Cre­ation in the light of his­tor­i­cal and dialec­ti­cal mate­ri­al­ism. The dia­logue between these onto­log­i­cal dif­fer­ences, led us to crit­i­cize the onto­log­i­cal mod­el cas­torid­i­ano and explain the Marx­i­an onto­log­i­cal notion present in the Vygot­skian work in which the author demon­strates that Imag­i­na­tion and Cre­ation con­sti­tute them­selves as parts of human prax­is. Although, deter­mined objec­tive­ly and mate­ri­al­ly, these cat­e­gories are still essen­tial to under­stand­ing the human capac­i­ty to break free, includ­ing from objec­tive and mate­r­i­al real­i­ty trans­form­ing it and trans­form­ing itself. 

Key­words: Imag­i­na­tion, Cre­ativ­i­ty, Ontol­ogy, Cas­to­ri­adis, His­tor­i­cal-Cul­tur­al Psychology

Imaginação e criação: questões ontológicas

Esse arti­go obje­ti­va apre­sen­tar uma análise sobre as cat­e­go­rias Imag­i­nação e Cri­ação como capaci­dades emi­nen­te­mente humanas que bal­izam as pos­si­bil­i­dades do agir em liber­dade e con­stituem parte da essên­cia do ser humano enquan­to ser social cuja gênese está fun­da­da no trabalho.

Esse tra­bal­ho é embasa­do, em partes, nas elab­o­rações teóri­c­as da pesquisa de mestra­do da auto­ra, cujo obje­ti­vo foi anal­is­ar em que con­sis­tem as raízes da ativi­dade humana trans­for­mado­ra a par­tir dessas cat­e­go­rias de análise: Imag­i­nação e Criação.

Nesse arti­go, visa-se a apon­tar os equívo­cos na inter­pre­tação da teo­ria vygot­skiana na pesquisa cita­da, assim como apre­sen­tar uma análise críti­ca do ref­er­en­cial cas­to­ri­a­di­ano à luz do méto­do mate­ri­al­ista históri­co e dialéti­co e da Ontolo­gia do Ser Social.

A escol­ha de Cas­to­ri­adis se deu por sua vas­ta pro­dução int­elec­tu­al na qual, por meio de uma análise críti­ca da história da filosofia clás­si­ca e das her­anças dessa no pen­sa­men­to mod­er­no e na críti­ca à Freud e Marx, o autor fun­da­men­ta uma ontolo­gia humana jus­ta­mente no proces­so imag­i­na­ti­vo e cria­ti­vo, que são anal­isa­dos como Imag­inário Social e Imag­i­nação Rad­i­cal, fun­da­dos no Imag­inário Radical.

Vygot­sky, por sua vez, é um autor que, inseri­do na tradição marx­ista em que a ontolo­gia está fun­da­da no tra­bal­ho, vai traçar um ref­er­en­cial acer­ca do desen­volvi­men­to humano, anal­isan­do históri­ca e social­mente as raízes das Funções Psi­cológ­i­cas Supe­ri­ores, com­preen­den­do a Imag­i­nação como um Sis­tema Psi­cológi­co, ou seja, uma ativi­dade que con­gre­ga a inter-relação entre as Funções Psi­cológ­i­cas Superiores.

O apro­fun­da­men­to nos estu­dos sobre as bases Ontológ­i­cas do Ser Social na tradição marx­ista e da cen­tral­i­dade do méto­do mate­ri­al­ista históri­co e dialéti­co na teo­ria vygot­skiana, tor­na-se pos­sív­el anal­is­ar criti­ca­mente a ideia, con­forme expres­sa por Cas­to­ri­adis, de uma ontolo­gia fun­da­da na imag­i­nação e apon­tar seus lim­ites e inconsistência.

O elemento imaginário e as análises de Castoriadis para uma ontologia

Cas­to­ri­adis apre­sen­ta uma nova for­ma de pen­sar criti­ca­mente o par­a­dig­ma da mod­ernidade. Sua pro­dução teóri­ca car­ac­ter­i­za-se por ser uma con­strução rica, den­sa, proces­su­al e com­plexa, ori­en­ta­da para com­preen­der o homem den­tro dos diver­sos proces­sos de sua condição social, cul­tur­al e históri­ca. De acor­do com González-Rey, (2003, p. 98): “(…) Cas­to­ri­adis está imer­so sem­pre nas duas fontes teóri­c­as prin­ci­pais de sua obra: Marx e Freud, ape­sar de que real­iza uma críti­ca explíci­ta a ambas, a par­tir da qual orga­ni­za seu próprio aporte teóri­co e metodológico”.

Tra­ta-se de um aporte teóri­co coer­ente que anal­isa min­u­ciosa e criti­ca­mente as cat­e­go­rias filosó­fi­cas clás­si­cas, a fim de romper com a lóg­i­ca ontológ­i­ca her­da­da. A sua obra sem­i­nal “A insti­tu­ição Imag­inária da Sociedade” (1975/2000) apre­sen­ta suas críti­cas a Freud e Marx, cam­in­ho teóri­co fun­da­men­tal que o lev­ou às anális­es que bal­izam sua defe­sa do Imag­inário Rad­i­cal como fun­dante do ser social. De acor­do com Auto­ra et.al. (2008, p. 27):

Cas­to­ri­adis foi um pen­sador ino­vador, que cuida­dosa­mente evi­tou os mod­is­mos da hora na vida int­elec­tu­al france­sa (…). Se o quadro do marx­is­mo não lhe sat­is­fazia mais, tam­pouco a cena france­sa lhe ofer­e­cia qual­quer âni­mo; suas críti­cas não o levaram a cair no lib­er­al­is­mo, como muitos ex-marx­is­tas, ain­da menos a faz­er qual­quer con­cessão na luta con­tra a opressão e pela insti­tu­ição da autono­mia humana.

Cas­to­ri­adis era um mil­i­tante da autono­mia, mas tam­bém pode ser chama­do de “O filó­so­fo da imag­i­nação”, pois dedicara grande parte de seus escritos às inves­ti­gações acer­ca desse tema, asso­cian­do as cat­e­go­rias imag­i­nação e cri­ação e anal­isan­do a imag­i­nação como base daqui­lo que nos faz humanos.

Cas­to­ri­adis estu­dou a Imag­i­nação Social e Rad­i­cal sob a óti­ca da cri­ação e não sub­or­di­nadas ao deter­min­is­mo, por­tan­to, anal­isan­do a História como autocri­ação humana. Como se pode notar, tal ref­er­en­cial não pode­ria ser deix­a­do de fora para con­tribuir com a temáti­ca que se propôs esta pesquisa, tam­pouco pode ser igno­ra­do em estu­dos que visam a anal­is­ar as reais condições humanas de romper com a sub­ju­gação impos­ta pela sociedade capitalista.

Cas­to­ri­adis, em diver­sos tex­tos, em espe­cial, na série: “Lo que hace la Gre­cia, La cite et le lois e Thu­cidyde: la forece et le droit” dis­cute qual foi o grande feito para a humanidade da filosofia gre­ga. De acor­do com ele, os gre­gos quan­do cri­am a filosofia oci­den­tal só o fazem porque antes dis­so as tragé­dias abri­ram-lhes o cam­in­ho para filosofar.

E o que as tragé­dias gre­gas rev­e­lam? Para Cas­to­ri­adis, elas desve­lam o Caos/Abismo/Sem Fun­do que é, em últi­ma instân­cia, a morte. Ou seja, sobre esse abis­mo que a sociedade se con­strói, os seres humanos são ani­mais que têm con­sciên­cia da morte, da fini­tude, e por iss mes­mo instituem a sociedade. Dev­i­do à explic­i­tação do Caos, os gre­gos pas­sam a ques­tionar o sen­ti­do da vida, pas­sam a se ques­tionar e, além, ques­tion­am as insti­tu­ições às quais estão sub­or­di­na­dos. Des­tituem a magia de Zeus e seu Olimpo, saem do mun­do dos mitos, que já con­sti­tu­iam como uma insti­tu­ição imaginária,

Assim, são as ativi­dades da filosofia e políti­ca que “orde­nam” o mun­do dos gre­gos. Elas são aqui­lo que dá sen­ti­do para vida deles. A filosofia gre­ga bus­ca uma cos­molo­gia, uma ordem. Pode-se diz­er que, é olhan­do para a morte (fim) que os gre­gos filosofam.

Cas­to­ri­adis bus­ca fun­dar sua ontolo­gia no Imag­inário Rad­i­cal, a parte dessa análise da cri­ação do mun­do grego, numa ten­ta­ti­va de com­preen­der os proces­sos humanos em sua gênese, de for­ma monista e, prin­ci­pal­mente, ten­tan­do se livrar das teses do fim da história e do pen­sa­men­to ontológi­co her­da­do. Exal­tan­do, assim, a capaci­dade humana de imag­i­nar e con­stru­ir, cri­ar as insti­tu­ições que, por sua vez, fazem parte da insti­tu­ição da humanidade.

O Ser humano só pode tor­na-se racional ao ser social­iza­do, ao se apro­pri­ar da cul­tura em que está inseri­do. A cri­ança pas­sa a com­preen­der que o dis­cur­so de sua mãe, por exem­p­lo, que cor­rige o com­por­ta­men­to do fil­ho, não car­rega as sig­nifi­cações que a mãe soz­in­ha lhes dá, mas sim traz con­si­go as sig­nifi­cações insti­tuí­das por toda uma sociedade.

A psique é, antes de tudo, imag­i­nação rad­i­cal, na medi­da em que é fluxo ou tor­rente inces­sante de rep­re­sen­tação, dese­jos, afe­tos. Essa tor­rente é emergên­cia con­tínua. É inútil fechar os olhos ou tapar os ouvi­dos – haverá sem­pre algu­ma coisa. Essa coisa se pas­sa “den­tro”: ima­gens, lem­branças, dese­jos, temores, “esta­dos da alma” surgem de modo que às vezes podemos com­preen­der ou mes­mo “explicar”, e out­ras vezes abso­lu­ta­mente não. (Cas­to­ri­adis, 2004, p. 131).

E por Imag­inário Rad­i­cal compreendemos:

(…) a instân­cia que tran­scende o sub­stra­to biológi­co, per­mitin­do que o ser humano se torne úni­co em relação aos out­ros ani­mais. É “onde” se dá a cri­ação, pos­si­bil­i­tan­do o surg­i­men­to da sub­je­tivi­dade, o que leva à dis­tinção, tam­bém, dos demais seres humanos. As pro­duções do imag­inário rad­i­cal podem impres­sion­ar porque se car­ac­ter­i­zam pela ausên­cia de sub­or­di­nação à deter­minidade; não se restringem aos sen­ti­dos e às expli­cações que pos­samos dar a elas. (Tau­ro, Balt­haz­ar e Fur­ta­do., 2008, p. 04–05).

Destarte, são nas pro­duções psíquicas que o autor com­preen­derá, de for­ma mais explíci­ta, a dimen­são não deter­mináv­el do ser humano. Assim, ele exal­tará a descober­ta de Freud – o incon­sciente – por igno­rar o tem­po e a con­tradição, afir­man­do que tal descober­ta não fora bem uti­liza­da e pos­tu­la que:

O incon­sciente con­sti­tui um “lugar” onde o tem­po (iden­titário) – como deter­mi­na­do por e deter­mi­nan­do uma sucessão orde­na­da – não existe, onde os con­tra­ditórios não se excluem mutu­a­mente, mais pre­cisa­mente, onde não se pode cog­i­tar de con­tra­ditórios, e que não é ver­dadeira­mente um lugar, já que o lugar impli­ca a ordem e a dis­tinção. (…) O incon­sciente só existe enquan­to como fluxo indis­so­ci­avel­mente representativo/afetivo/ inten­cional. (Cas­to­ri­adis, 2000, p. 317).

Ao tratar o incon­sciente enquan­to fluxo, ele está em fran­ca oposição ao incon­sciente freudi­ano que é estáti­co e já deter­mi­na­do sem que haja atu­al­iza­ção. Dessa for­ma, para Cas­to­ri­adis os con­teú­dos incon­scientes são atu­al­iza­dos à medi­da que o indi­ví­duo é afe­ta­do. O incon­sciente cas­to­ri­a­di­ano é dinâmi­co, logo, perde a car­ac­terís­ti­ca de repetição do pas­sa­do e se tor­na a emergên­cia das rep­re­sen­tações e estru­turas novas:

“Mais ain­da aqui o espan­toso no ser humano não é que ele imi­ta – se ele nada tivesse senão isso, seríamos todos Adões e Evas – mas que ele não imi­ta, que ele faz uma coisa diver­sa da sim­ples imi­tação” (Cas­to­ri­adis, 2007, p.110).

Cas­to­ri­adis tra­bal­ha com as instân­cias do con­sciente e incon­sciente, con­tu­do não acei­ta o pre­domínio do incon­sciente enquan­to função dom­i­nado­ra úni­ca do com­por­ta­men­to humano:

(…) pos­so ser livre se esta­b­ele­cer com meu incon­sciente um out­ro tipo de relação, uma relação graças à qual pos­so saber, na medi­da do pos­sív­el, o que acon­tece nesse nív­el e que me per­mi­ta, na medi­da do pos­sív­el, fil­trar tudo aqui­lo que, do incon­sciente, pas­sa para min­ha ativi­dade exte­ri­or, diur­na. (Cas­to­ri­adis, 2004, p. 315).

Por essa razão, o autor afir­ma que a psi­canálise deve ter, como obje­ti­vo últi­mo, a autono­mia dos indi­ví­du­os, assu­min­do, com isso, uma práx­is tam­bém políti­ca. É Pre­ciso se lib­er­tar não ape­nas dos gril­hões que out­ros impõem, mas tam­bém daque­les que são cri­a­dos, de for­ma imag­inária, pelo próprio indi­ví­duo, obvi­a­mente, cri­ação essa medi­a­da pelas sig­nifi­cações imag­inárias soci­ais. Por­tan­to, Cas­to­ri­adis não ape­nas se apoia na psi­canálise, mas tece críti­cas que cul­mi­nam em impor­tantes con­tribuições para essa ciên­cia que, ao seu olhar, deve assumir, tam­bém, uma pos­tu­ra e práti­ca políti­ca, con­tribuin­do para a eman­ci­pação dos indivíduos.

Sua rad­i­cal­i­dade rev­olu­cionária se situa jus­ta­mente na ten­ta­ti­va de não sucumbir ao fatal­is­mo do fim da rev­olução da União Soviéti­ca e não deixa olvi­dar são os seres humanas capazes de cri­ar out­ro mun­do, com novas lóg­i­cas indi­vid­u­ais e cole­ti­vas, ain­da que a lóg­i­ca cap­i­tal­ista pareça tão nat­ur­al e impos­sív­el de sub­vert­er, é pre­ciso com­preen­der que este sis­tema é fru­to da cri­ação humana e por isso mes­mo é passív­el de ser trans­for­ma­do e revolucionado.

A psique e suas funções psicológicas superiores como fruto do trabalho ontológico — Vygotsky

Sem aban­donar o marx­is­mo e demon­stran­do um pro­fun­do con­hec­i­men­to e rig­or em relação ao méto­do mate­ri­al­ista históri­co e dialéti­co, Vygot­sky vai anal­is­ar Imag­i­nação e cria­tivi­dade como funções psi­cológ­i­cas supe­ri­ores, próprias do ser humano.

Para Vygot­sky, o ser humano por meio da imag­i­nação com­põe com a real­i­dade uma relação tan­to de dependên­cia quan­to de dis­tan­ci­a­men­to. É da real­i­dade que reti­ramos os con­teú­dos que com­porão nos­sa imag­i­nação: “Seria um mila­gre se a imag­i­nação inven­tasse do nada ou tivesse out­ras fontes para suas cri­ações que não a exper­iên­cia ante­ri­or” (Vygot­sky, 1930/2009, p. 20). E, para ele, a imag­i­nação é o pon­to cru­cial da união dess­es dois mun­dos, o social e o individual/subjetivo, na ativi­dade psíquica.

Ao pas­so que a imag­i­nação depende da real­i­dade, ela tam­bém tem a capaci­dade de se afas­tar dela, con­sti­tuin­do-se, assim, em uma impor­tante for­ma de con­hec­i­men­to dessa mes­ma real­i­dade. Para a imag­i­nação, é impor­tante a direção da con­sciên­cia que con­siste em se afas­tar da real­i­dade, em uma ativi­dade rel­a­ti­va­mente autôno­ma da con­sciên­cia, que se difer­en­cia da cog­nição ime­di­a­ta da realidade.

(…) toda pen­e­tração mais pro­fun­da na real­i­dade exige uma ati­tude mais livre da con­sciên­cia para com ele­men­tos dessa real­i­dade, um afas­ta­men­to do aspec­to exter­no aparente da real­i­dade dada ime­di­ata­mente na per­cepção primária, a pos­si­bil­i­dade de proces­sos cada vez mais com­plex­os, com a aju­da dos quais a cog­nição da real­i­dade se com­pli­ca e enriquece (Vygot­sky, 1932/1998, p. 129).

A relação de dependên­cia fica evi­dente quan­do Vygot­sky dis­corre acer­ca da ativi­dade do brin­que­do na cri­ança, ela é o que estim­u­la a imag­i­nação e aux­il­ia a cri­ança em suas ações de modo a inter­nalizar e cri­ar regras, o que a ori­en­taria para a realidade:

Por­tan­to, a noção de que uma cri­ança pode se com­por­tar em uma situ­ação imag­inária sem regras é sim­ples­mente incor­re­ta. Se a cri­ança está rep­re­sen­tan­do o papel de mãe, então ela obe­dece às regras de com­por­ta­men­to mater­nal. O papel que a cri­ança rep­re­sen­ta e a relação dela com um obje­to (se o obje­to tem seu sig­nifi­ca­do mod­i­fi­ca­do) orig­i­nar-se-ão sem­pre das regras. (Vygot­sky, 2007, p.112)

Emb­o­ra a ativi­dade imag­inária é tam­bém aqui­lo que lib­er­ta do ime­di­ata­mente dado, as cri­anças de ten­ra idade não são capazes de agir dessa for­ma. Assim, será a par­tir da aquisição da capaci­dade de sig­nal­iza­ção e da medi­ação da lin­guagem, que a imag­i­nação pas­sa a agir de modo a se lib­er­tar da real­i­dade, proces­so que se com­ple­ta na ado­lescên­cia pelos pen­sa­men­tos em con­ceitos, pen­sa­men­tos por abstra­to. Então, a imag­i­nação se mod­i­fi­ca e amplia.

Por isso, a imag­i­nação da cri­ança é mais pobre que a do adul­to, o que se expli­ca pela maior pobreza de sua exper­iên­cia. “(…) A imag­i­nação orig­i­na-se exata­mente desse acú­mu­lo de exper­iên­cia” (Vygot­sky, 1930/2009, p. 22). Aqui, pode-se notar a imbri­ca­da relação entre imag­i­nação e per­i­jivênie. Então, quan­to mais rica a experiência/vivência da pes­soa, mais mate­r­i­al está disponív­el para a imag­i­nação dela, como con­teú­do de sua memória e con­sti­tu­ição de seu pensamento.

Para Vig­ot­sky, o pen­sa­men­to é ger­a­do a par­tir dos afe­tos que sofre o cor­po, tudo aqui­lo que somos capazes de sen­tir, sua gênese é mate­r­i­al. “Des­ta for­ma, todas nos­sas vivên­cias fan­tás­ti­cas e irreais se desen­volvem sobre uma base emo­cional com­ple­ta­mente real” (Vygot­sky, 1925/1972 p. 258). Dessa fei­ta, imag­i­nação e sen­ti­men­tos não são proces­sos iso­la­dos entre si. Há, entre eles, uma mútua dependên­cia, uma vez que, a imag­i­nação é capaz de ger­ar sen­ti­men­tos e ess­es tam­bém podem deter­mi­nar a imaginação.

Vygot­sky (1930/2011, p. 258) afirma:

(…) todo sen­ti­men­to, toda emoção tende a se man­i­fes­tar em deter­mi­nadas ima­gens con­cor­dantes com ela, como se a emoção pudesse escol­her impressões, ideias, ima­gens con­gru­entes com o esta­do de âni­mo que nos dom­i­nasse naque­le instante. Do mes­mo modo como os home­ns apren­der­am há muito tem­po a man­i­fes­tar por meio de expressões exter­nas seu esta­do inte­ri­or de âni­mo, tam­bém as ima­gens da fan­ta­sia servem de expressão inter­na para nos­sos sen­ti­men­tos. (…) As ima­gens da fan­ta­sia servem de lin­guagem inte­ri­or aos nos­sos sen­ti­men­tos sele­cio­nan­do deter­mi­na­dos ele­men­tos da real­i­dade e com­bi­nan­do-os de tal for­ma que respon­dam ao nos­so esta­do inte­ri­or de âni­mo e não a lóg­i­ca exte­ri­or dessas imagens.

Ele com­preende o caráter cria­ti­vo da imaginação:

(…) não repete em for­mas e com­bi­nações iguais impressões iso­ladas, acu­mu­ladas ante­ri­or­mente, mas con­strói novas séries, a par­tir das impressões ante­ri­or­mente acu­mu­ladas. Em out­ras palavras, o novo que inter­fere no próprio desen­volvi­men­to de nos­sas impressões e as mudanças destas para que resulte uma nova imagem, inex­is­tente ante­ri­or­mente, con­sti­tui, como se sabe, o fun­da­men­to bási­co da ativi­dade que denom­i­namos imag­i­nação (Vygot­sky, 1932/1998, p. 107).

Para Vygot­sky, a imag­i­nação é a base da cri­ação e na base da cri­ação há sem­pre uma inadap­tação, da qual surgem as neces­si­dades, essa neces­si­dade que lev­ou o ser humano a inter­vir de for­ma ori­en­ta­da na natureza para trans­for­má-los e adap­tá-la. Daí que se pode cri­ar e trans­for­mar, não ape­nas a natureza, mas o próprio ser humano de for­ma indi­vid­ual e coletiva.

A questão que se rev­ela aqui é que, jus­ta­mente, porque o ser humano foi/é capaz de cri­ar tam­bém uma tra­ma de sen­ti­dos e sig­nifi­ca­dos que ele foi capaz de romper com seus instin­tos selvagens.

Todas as inves­ti­gações biológ­i­cas con­duzem à ideia que o homem mais prim­i­ti­vo que con­hece­mos merece bio­logi­ca­mente o títu­lo com­ple­to de homem. A evolução biológ­i­ca do homem já tin­ha ter­mi­na­do antes que começasse seu desen­volvi­men­to históri­co. Já, a ten­ta­ti­va de explicar a difer­ença entre nos­sa for­ma de pen­sar e a do homem prim­i­ti­vo, con­sideran­do que esse se encon­tre em out­ro nív­el de desen­volvi­men­to biológi­co, con­sti­tuiria uma con­fusão gros­seira entre os con­ceitos de evolução biológ­i­ca e desen­volvi­men­to históri­co. (Vygot­sky, 1930/2004 p. 115)

Assim, para o autor, a imag­i­nação e a cria­tivi­dade, como parte do proces­so do tra­bal­ho humano, rep­re­sen­tari­am esse desen­volvi­men­to históri­co-cul­tur­al da psique humana e assevera:

Efe­ti­va­mente, a luta pela existên­cia e a seleção nat­ur­al, as duas forças que dirigem a evolução biológ­i­ca no mun­do ani­mal, per­dem sua importân­cia deci­si­va no ter­reno do desen­volvi­men­to históri­co do homem. Ago­ra, estas novas leis tomam seu lugar: aque­las que reg­u­lam o cur­so da história humana e que abar­cam a total­i­dade do proces­so do desen­volvi­men­to mate­r­i­al e men­tal da sociedade humana (Vygot­sky 1930/1998 b, p.110).

Por­tan­to, há uma sub­sti­tu­ição da evolução biológ­i­ca, pela evolução históri­ca e social, sendo que essa pas­sa a ser mais deter­mi­nante que aque­la para a evolução dos seres humanos. E essa dimen­são históri­ca e social é fru­to do salto ontológi­co dado pela humanidade a par­tir do tra­bal­ho humano que tem Imag­i­nação e Cri­ação como partes desse processo.

Das divergências ontológicas: discursos semelhantes com raízes divergentes

A imag­i­nação sem­pre fora rel­e­ga­da, pelas cor­rentes racional­is­tas, a uma inter­pre­tação “mág­i­ca” per­ten­cente ao mun­do “sobre­nat­ur­al” – metafísi­ca – por isso, indigna de um estu­do cien­tí­fi­co. Para Sawa­ia (2009, p. 366), a dimen­são da imag­i­nação jun­ta­mente com a do afe­to na per­son­al­i­dade humana são “esque­ci­das e dis­crim­i­nadas como per­tur­bado­ras da ordem social, do com­por­ta­men­to vir­tu­oso e do con­hec­i­men­to”. Por­tan­to, há nes­ta pesquisa, ain­da que de for­ma táci­ta, um ques­tion­a­men­to norteador fun­da­men­tal: a prevalên­cia do par­a­dig­ma cartesiano.

Emb­o­ra na tradição filosó­fi­ca mod­er­na a cri­ação e, sobre­tu­do a imag­i­nação ten­ha sido rel­e­ga­da ou à ontolo­gia reli­giosa, ou mes­mo, como proces­sos coad­ju­vantes ao proces­so da Razão, que, para o pen­sa­men­to mod­er­no, assume a pri­mazia dos proces­sos filosó­fi­cos e cien­tí­fi­cos. Anal­isou-se essas duas cat­e­go­rias (imag­i­nação e cri­ação) a par­tir de autores que, com­preen­den­do a importân­cia dessas capaci­dades humanas, se debruçaram em estu­dos cujos des­do­bra­men­tos levaram a cam­in­hos diver­gentes. No entan­to, devem ser anal­isa­dos, sobre­tu­do por meio dessa divergên­cia, ain­da que apre­sen­tem pon­tos em comum.

Imag­i­nação e cri­ação foram anal­isadas, por­tan­to, como capaci­dades iner­ente­mente humanas, rad­i­cal­mente difer­ente das dos out­ros ani­mais. São capaci­dades fun­da­men­tais a essên­cia humana e que não devem ser rel­e­gadas ao divi­no ao sagra­do ou deix­adas à margem da lóg­i­ca filosó­fi­ca her­da­da, como acer­tada­mente crit­i­ca­va Cas­to­ri­adis. Todavia, não podem ser com­preen­di­das como a ontolo­gia do ser social, pois o que é gênese e essên­cia do humano, enquan­to ser social, é o tra­bal­ho de trans­for­mação da natureza a fim de saciar uma neces­si­dade humana e, con­se­quente­mente, trans­for­mação dessa própria humanidade em níveis cole­tivos e/ou individuais.

Essa é a mais fun­da­men­tal pre­mis­sa desse tra­bal­ho e fonte das críti­cas à ontolo­gia pro­pos­ta por Cas­to­ri­adis fun­da­da no imag­inário. É pre­ciso com­preen­der e fris­ar que imag­i­nação e cri­ação são capaci­dades humanas rad­i­cal­mente difer­entes dos ani­mais porque estão fun­dadas no trabalho.

A com­preen­são da ontolo­gia marx­i­ana à luz da Ontolo­gia do Ser Social de Lukács ilu­mi­nam ago­ra, não só os apon­ta­men­tos que são aqui tra­bal­ha­dos, como tam­bém a leitu­ra críti­ca do próprio tra­bal­ho de dis­ser­tação que deu origem a este arti­go que, vale ressaltar, é final­iza­do jus­ta­mente nos anos em que a tradução dos livros de Lukács são ofi­cial­mente pub­li­cadas em português.

Apon­ta-se aqui os equívo­cos das inter­pre­tações ante­ri­ores pela per­spec­ti­va críti­ca e fun­da­men­tal da ontolo­gia marx­i­ana para a com­preen­são da essên­cia humana e do papel que exercem as capaci­dades de imag­i­nação e cri­ação na con­sti­tu­ição do ser humano.

A fun­da­men­tal leitu­ra de Marx sobre os deter­mi­nantes soci­ais que con­stituem a sociedade e sua his­to­ri­ci­dade enraizadas no no tra­bal­ho humano como ontológi­co, ou seja, fun­dante do ser social (como nos demon­stra Lukács) no cam­po da aparên­cia, pode pare­cer dar pri­mazia estas capaci­dades iner­ente­mente humanas, aqui anal­isadas enquan­to cat­e­go­rias: Imag­i­nação e Cri­ação, já que, para Marx, é o ser social capaz de imag­i­nar e cri­ar deter­mi­nações soci­ais que o con­sti­tui e con­sti­tui a sociedade de for­ma coletiva

Con­tu­do, é pre­ciso apon­tar que não fos­se o tra­bal­ho humano ontológi­co do ser social, tais capaci­dades não pode­ri­am exi­s­tir, não bro­tari­am da psique humana por puro praz­er ou despraz­er, ou como fru­to do dese­jo, como demon­stram os exper­i­men­tos e a teo­ria de Vygot­sky acer­ca do desen­volvi­men­to das funções Psi­cológ­i­cas Supe­ri­ores e da con­sciên­cia. Este autor demon­stra que, essas capaci­dades só exis­tem da for­ma como se apre­sen­tam no ser humano, porque inte­gram o tra­bal­ho ontológico.

São essas capaci­dades humanas de imag­i­nar e cri­ar intrin­se­cas ao proces­so do tra­bal­ho humano que per­mitem Marx diz­er, por exemplo:

Uma aran­ha exe­cu­ta oper­ações semel­hantes às do tecelão, e uma abel­ha enver­gonha muitos arquite­tos com a estru­tu­ra de sua colméia. Porém, o que des­de o iní­cio dis­tingue o pior arquite­to da mel­hor abel­ha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de con­struí-la com a cera. No final do proces­so de tra­bal­ho, chega-se a um resul­ta­do que já esta­va pre­sente na rep­re­sen­tação do tra­bal­hador no iní­cio do proces­so, por­tan­to, um resul­ta­do que já exis­tia ideal­mente (Marx, 2011, p. 327).

Imag­i­nação e cri­ação, então, são parte do proces­so do tra­bal­ho fun­dante da humanidade, a par­tir do que Lukács vai chamar de salto ontológi­co. Dessa for­ma, é Lukács quem demon­stra a orig­i­nal­i­dade de Marx ao que­brar com, os assim chama­dos, par­a­dig­mas das ciên­cias mod­er­nos e fun­dar uma ciên­cia que se baseia em uma ontolo­gia própria ao ser humano, a Ontolo­gia do Ser Social: A ontolo­gia marx­i­ana do ser social exclui a trans­posição sim­plista, mate­ri­al­ista vul­gar, das leis nat­u­rais para a sociedade, como era moda, por exem­p­lo, na época do “dar­win­is­mo social”. As for­mas de obje­tivi­dade do ser social se desen­volvem à medi­da que a práx­is social surge e se explici­ta a par­tir do ser nat­ur­al, tor­nan­do-se cada vez mais clara­mente soci­ais. Esse desen­volvi­men­to é um proces­so dialéti­co, ini­ci­a­do com um salto, com o pôr tele­ológi­co no tra­bal­ho, para o qual não pode haver nen­hu­ma analo­gia na natureza. (Lukács, 2012, p.???)

A den­si­dade da obra marx­i­ana, apreen­di­da por Vygot­sky[1] e apli­ca­da à análise desen­volvi­men­to humano, de sua con­sciên­cia e à Ciên­cia Psi­cológ­i­ca, reside jus­ta­mente no deslo­ca­men­to da for­ma de análise do ser social.

Marx deixa de lado as impor­tações par­a­dig­máti­cas das ciên­cias da natureza como faz o pen­sa­men­to cien­tí­fi­co da mod­ernidade e como tam­bém o fiz­er­am as diver­sas cor­rentes que se dizem pós-mod­er­nas, ao traduzir as leis, ago­ra, da físi­ca quân­ti­ca e sua rel­a­tivi­dade para os par­a­dig­mas das ciên­cias humanas.

O que Marx nos deixa como lega­do fun­da­men­tal de sua obra é: a humanidade pos­sui uma ontolo­gia própria, ela se fun­da nes­sa ontolo­gia, cria essa ontolo­gia e por essa razão se desco­la da natureza. É cer­to diz­er que viven­cia uma relação de dependên­cia para com a natureza mas, ain­da assim, é cer­to tam­bém que sub­verte con­stan­te­mente esta natureza seja o ambi­ente em que vive, transformando‑o à sua neces­si­dade seja do próprio sub­stra­to biológi­co, o organ­is­mo humano. Marx assim descreve esse processo:

Ele (o trabalhador/ser humano) uti­liza as pro­priedades mecâni­cas, quími­cas e físi­cas das coisas para fazê-las atu­ar sobre out­ras coisas, de acor­do com seu propósi­to. O obje­to de que o tra­bal­hador se apodera ime­di­ata­mente — descon­sideran­do-se os meios de sub­sistên­cia encon­tra­dos pron­tos na natureza, como as fru­tas, por exem­p­lo, em cuja cole­ta seus órgãos cor­po­rais servem como úni­cos meios de tra­bal­ho — é não o obje­to do tra­bal­ho, mas o meio de tra­bal­ho. É assim que o próprio meio nat­ur­al se con­verte em órgão de sua ativi­dade, um órgão que ele acres­cen­ta a seus próprios órgãos cor­po­rais, pro­lon­gan­do sua for­ma nat­ur­al, ape­sar daqui­lo que diz a Bíblia. Do mes­mo modo como a ter­ra é seu armazém orig­i­nal de meios de sub­sistên­cia, ela é tam­bém seu arse­nal orig­inário de meios de tra­bal­ho (Marx, 2011, p. 329).

Destarte, só a par­tir dessa leitu­ra que se pode afir­mar a importân­cia das cat­e­go­rias que anal­isamos, Imag­i­nação e cri­ação, na medi­da em que com­preen­di­das as deter­mi­nações soci­ais e históri­c­as da própria con­sti­tu­ição da nos­sa con­sciên­cia a fim de demon­strar como o ser humano é capaz de cri­ar e insti­tuir sen­ti­dos, sig­nifi­ca­dos indi­vid­u­ais, sobre­tu­do, cole­tivos, é, por fim capaz de insti­tuir e cri­ar sis­temas soci­ais, filosó­fi­cos, políti­cos, cul­tur­ais, etc.

Neste pon­to, Cas­to­ri­adis acer­ta em sua análise sobre o faz­er humano, mas deixa se levar pela aparên­cia do fenô­meno ao trib­u­tar a ontolo­gia do ser social ao Imag­inário Rad­i­cal, uma vez que, esse só existe e só pode exi­s­tir como parte da ação fun­dante do ser social: o trabalho.

A dimen­são do imag­inário não deve ser descon­sid­er­a­da da ontolo­gia, para Roto­lo, é jus­ta­mente isso que Cas­to­ri­adis faz: “(…) res­gatar out­ra dimen­são da ontolo­gia, a par­tir da inde­ter­mi­nação e da imag­i­nação como sendo tam­bém fun­da­men­tais, além da razão e da deter­minidade (Roto­lo, 2011, p. 173).”

Nem imag­i­nação nem cri­ação, no entan­to, exis­tem per se, o próprio Cas­to­ri­adis apon­ta que tais ativi­dades não são ex-nihi­lo ou in-nihi­lo mas cum-nihi­lo e que a origem destas ativi­dades e da ativi­dade emi­nen­te­mente psíquica de cri­ar rep­re­sen­tações, no cam­po indi­vid­ual, se dá por meio do afe­to, daqui­lo que afe­ta o cor­po e gera despraz­er, por­tan­to de uma base material.

Todavia, Cas­to­ri­adis con­tes­ta a cen­tral­i­dade do tra­bal­ho, o qual, para ele, já está por si só deter­mi­na­do. Além dis­so, entende que a cria­tivi­dade e a imag­i­nação não podem se dar pela super­ação, mas como cri­ação de algo novo, novas for­mas. Colo­car a existên­cia aqui­lo que não havia cor­re­sponde no mun­do real, mate­r­i­al, em últi­ma instân­cia, con­sti­tuir o real a par­tir do Imag­inário Radical.

A deter­mi­nação obje­ti­va e mate­r­i­al, porém, está pos­ta na medi­da em que o ser humano vive e depende da sua relação com a natureza e com a real­i­dade obje­ti­va e mate­r­i­al. A questão aqui é: a capaci­dade de trans­for­mação tele­ológ­i­ca dessa natureza ou dessa real­i­dade obje­ti­va e mate­r­i­al. Nesse sen­ti­do, o movi­men­to de super­ação dialéti­co é um movi­men­to de negação do que era pra sur­gir algo que será. Ain­da que, incor­po­ran­do, nesse movi­men­to, alguns traços daqui­lo que é nega­do, essa incor­po­ração não é e nem pode ser uma incor­po­ração de com­ple­tude, mas sim de super­ação e aqui superação/negação encer­ram, por fim, aqui­lo que era e deixa de ser, é um movi­men­to de cri­ar algo que não exis­tia antes, basea­do no que já havia e, por con­seguinte, fazen­do com o que exis­tia deixe de exi­s­tir da for­ma como era antes.

A pos­si­bil­i­dade de agir de for­ma livre da deter­minidade biológ­i­ca e/ou nat­ur­al que os seres humanos adquiri­ram, não é fru­to de Imag­i­nação, mas de tra­bal­ho tele­o­logi­ca­mente ori­en­ta­do para um fim. Não se pode cair na ilusão de que imag­i­nação e cri­ação enquan­to base da liber­dade humana estão, por sua vez, livres da base mate­r­i­al que as con­sti­tui, sob pena de uma liber­dade fal­sa ou parcial.

Imag­i­nar algo que não se pode obje­ti­var é man­ter-se no emb­o­ta­men­to indi­vid­ual do cam­po das ideias de um mun­do próprio e não par­til­ha­do ou par­til­háv­el e encer­ra-se em si mes­mo como sujeito indi­vid­ual e não social ou cole­ti­vo. O ser social, todavia, deve ser com­preen­di­do em sua total­i­dade como algo que se con­sti­tui e se atu­al­iza na e pela total­i­dade, e não ape­nas em partes da par­tic­u­lar­i­dade ou do proces­so ontológi­co. A elab­o­ração pura­mente ide­al, por con­seguinte, pode facil­mente cindir o que for­ma um todo no plano do ser, e atribuir às suas partes uma fal­sa autono­mia (Lukács, 2012)

Ora, é em Marx, em sua ontolo­gia que se encon­trar a demon­stração da natureza mate­r­i­al da con­sti­tu­ição de nos­sa humanidade e é em Vygot­sky que se encon­tra a demon­stração, por meio do Mate­ri­al­is­mo históri­co e dialéti­co, de como se dá a con­sti­tu­ição da psique, da sub­je­tivi­dade e con­sciên­cia humana a par­tir da trans­for­mação das funções psi­cológ­i­cas ele­mentares em funções psi­cológ­i­cas supe­ri­ores para as quais não há nen­hum out­ro cor­re­spon­dente no reino animal.

Assim, a ativi­dade de sem­pre lidar com a real­i­dade obje­ti­va a cada vez de for­ma nova e trans­for­mar essa real­i­dade sem­pre em algo novo é própria desse ser social “(…) que se par­tic­u­lar­iza pela inces­sante pro­dução do novo, através da trans­for­mação do mun­do que o cer­ca de maneira con­scien­te­mente ori­en­ta­da, tele­o­logi­ca­mente pos­ta (Lessa, 2015, p. 16)”.

Por­tan­to, estu­dar as raízes da ativi­dade de trans­for­mação da natureza, do próprio ser humano e de sua cri­ação de sen­ti­dos e sig­nifi­ca­dos, é ir para além do cam­po da aparên­cia e chegar a sua gênese que é o tra­bal­ho. Dessa fei­ta, con­forme Vygot­sky afir­mou, estu­dar não ape­nas a capaci­dade do agir em liber­dade, mas com­preen­der que imag­i­nação e cri­ação se con­stituem como pon­to de união entre meio interno/subjetivo e externo/objetivo. É por causa da existên­cia da Imag­i­nação e da cri­ação dire­ta­mente lig­a­da a este sis­tema que somos, em últi­ma instân­cia, capazes de obje­ti­var nos­sa subjetividade

Sem objetivação/exteriorização não há nen­hu­ma trans­for­mação tele­o­logi­ca­mente pos­ta do real; sem exteriorização/objetivação não há vida social, por­tan­to não há sujeito. Ser humano, para Lukács, sig­nifi­ca uma cres­cente capaci­dade de objetivar/exteriorizar − isto é – trans­for­mar o mun­do segun­do final­i­dades social­mente postas. Talvez por isso, a Vygot­sky ten­ham sido tão caros os estu­dos sobre arte como exteriorização/objetivação da sub­je­tivi­dade medi­a­da pela con­sciên­cia. (Lessa, 2015, p.25)

Considerações finais

Ao lon­go da pesquisa que deu origem a esse arti­go, bus­cou-se com­preen­der os dis­cur­sos comuns de autores com rad­i­cais difer­enças teóri­c­as e em que, exata­mente, residia esta divergên­cia. Tal tare­fa se con­cluiu, anos mais tarde, a par­tir da leitu­ra e com­preen­são da Ontolo­gia do Ser Social, longa­mente dis­cu­ti­da e apre­sen­ta­da na obra de Lukács e de autores da tradição marx­is­tas que traçam um pen­sa­men­to críti­co, basea­d­os na obra lukatiana.

Nesse sen­ti­do, a com­preen­são da difer­ença entre as ontolo­gias dos autores aqui tra­bal­ha­dos, pro­duz um debate que anal­isa, em últi­ma instân­cia, o critério de sua teo­ria. Dessa for­ma, pode-se anal­is­ar o tra­bal­ho como fun­dante do Ser Social e, por con­seguinte, a con­sti­tu­ição da con­sciên­cia e de Funções Psi­cológ­i­cas Supe­ri­ores como Imag­i­nação e Cri­ação como parte das práx­is humanas, inclu­sive da práx­is fundante.

Referências

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Notas

  1. Este debate sobre a com­preen­são vygot­skiana da Ontolo­gia marx­ista está den­sa­mente apre­sen­ta­do nos tra­bal­hos de Car­mo (2008) e Cos­ta (2020) que cor­rob­o­ram com nos­sa afir­mação da apreen­são da Ontolo­gia marx­i­ana por Vygot­sky e leitu­ra da obra vygot­skiana pela óti­ca da Ontolo­gia do Ser Social.

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